Sarah Waters | Jacobin | Paris - Publicado no Opera Mundi
Ocorrências têm coincidido com privatizações e reestruturações de empresas como a France Télécom, que conta 85 mortes desde 2008; líder sindical acredita que suicídios são fenômeno social e uma forma extrema de protesto
No início deste ano, uma mulher com pouco mais de 50 anos que trabalhava como gerente na empresa de correios francesa foi encontrada enforcada em seu escritório em Paris. Apesar de nenhum bilhete suicida ter sido encontrado, a morte foi ligada ao anúncio de dois dias antes sobre a participação da empresa no “Horizon 2020”, um plano de investimento da União Europeia, parte de uma série de reestruturações que irão mudar o status dos trabalhadores na empresa.
A tragédia é parte de uma epidemia de suicídios em grandes empresas francesas. Uma delas é a France Télécom (renomeada Orange em 2013), gigante das telecomunicações cujas “ondas de suicídio” coincidiram com a privatização e reestruturação da empresa.
Suicídios relacionados ao trabalho são um fenômeno internacional, como evidenciados pela enxurrada de mortes nas fábricas de produção da Foxconn no sul da China em 2010 ou pelo fenômeno do “karoshi”, morte por excesso de trabalho, no Japão. A França se destaca pelo grande número destas ocorrências, pela cobertura da mídia sobre a questão e pelos intensos debates jurídicos e políticos que se seguiram. Com uma taxa de suicídios de 14,7 por 100.000 habitantes, a França também tem um dos índices mais altos da Europa, o dobro do Reino Unido e três vezes maior do que Espanha e Itália.
A conexão entre o suicídio e as condições de trabalho é extremamente difícil de ser estabelecida e é geralmente o resultado de longos processos judiciais realizados pela família da vítima contra a empresa. Mas na France Télécom algumas pessoas deixaram cartas, que depois foram publicadas na imprensa francesa, que culpavam o trabalho de forma explícita. Os chefes reagiram tentando individualizar as causas dos suicídios, atribuindo-as a problemas mentais ou emocionais dos indivíduos e desassociando-as de qualquer relação com o local de trabalho.
Uma nova estrutura sindical criada em 2007, o Observatório do Estresse e da Mobilidade Forçada (L’Observatoire du stress et des mobilités forcées), tem tido um papel crucial para o reconhecimento dos suicídios ligados ao trabalho como um fenômeno social na França. Frente à hostilidade das empresas e dos sindicatos tradicionais, o Observatório tem conseguido trazer a atenção pública aos suicídios.
Jacobin: Como o Observatório foi criado?
Patrick Ackermann: Sabíamos que havia um mal-estar generalizado entre muitos trabalhadores da France Télécom. Então aconteceram os primeiros suicídios em 2008. As vítimas eram de todos os escalões: gestores, técnicos, operadores de call-center e administradores. Entre estes, alguns membros do sindicato.
Pedimos para a gerência investigar a situação, mas eles se recusaram. A maioria dos outros sindicatos estavam relutantes em intervir na questão dos suicídios. Tivemos a ideia de criar um novo tipo de estrutura sindical que monitoraria os suicídios, providenciando evidências claras sobre o que estava acontecendo e usando isso para confrontar a chefia.
Foi uma luta para tirar a ideia do papel. Estávamos isolados, sem recursos e encarando grande hostilidade. Os outros sindicatos achavam inapropriado ou até mesmo grosseiro da nossa parte em querer registrar os suicídios dos trabalhadores. Acho que subestimaram completamente a dimensão social do problema.
Desde o início nos preocupamos em não focar em casos individuais, mas de olhar para as causas fundamentais e tratar a questão como um fenômeno social generalizado.
O que o Observatório fez para abordar a crise dos suicídios?
Queríamos investigar a causa dos suicídios, acumular evidência e publicar os nossos achados. Uma das nossas primeiras iniciativas foi enviar um questionário online para todos os empregados da France Télécom com o intuito de medir os níveis de estresse no trabalho.
Os resultados comprovaram níveis críticos de estresse entre os trabalhadores. Dois a cada três empregados sofriam de estresse relacionado ao trabalho e um a cada dois queriam deixar a empresa. Obviamente a chefia rejeitou esta evidência, mencionando um questionário anterior feito por eles mesmos entre os empregados, apesar desses resultados nunca terem sido divulgados.
Como vocês usaram a mídia e a opinião pública como uma ferramenta na campanha?
Para cada suicídio que acontecia, contatávamos a imprensa. No começo, apenas tabloides ou jornais direitistas como Le Figaro se interessaram. No entanto, pouco depois, a grande imprensa e a televisão começaram a prestar atenção.
Em julho de 2009 houve um caso de suicídio de um engenheiro de 51 anos que deixou uma carta que foi publicada pela imprensa. Sua carta culpava o trabalho explicitamente como o motivo de sua morte, e dizia: “Eu estou tirando a minha vida por causa do meu trabalho na France Télécom. É o único motivo”. Ele também se referiu a uma “gestão através do terror” e ao estresse constante no trabalho. O suicídio desencadeou uma petição e uma manifestação dos funcionários de Marselha, onde ele trabalhava. A isso seguiu-se uma mobilização a nível nacional.
Uma série de programas televisivos tratou dos suicídios e o governo francês começou a se preocupar. O ministro do trabalho da época, Xavier Darcos, pediu que Didier Lombard, então CEO da France Télécom, organizasse uma entrevista coletiva como uma tentativa de acalmar a situação. Durante a coletiva, Lombard declarou: “Essa moda de suicídio precisa parar”. Muitas pessoas ficaram chocadas com a sua insensibilidade.
Por que você acha que os sindicatos tiveram tanta dificuldade em lidar com os suicídios ligados ao trabalho?
O Observatório conseguiu articular o sofrimento das pessoas no espaço de trabalho que não é necessariamente ligado às condições materiais ou físicas, mas a uma sensação de angústia profundamente enraizada. Isso vem de formas de gestão que submetem os indivíduos a pressões psicológicas e destrói o relacionamento deles ou delas com o trabalho e com os demais.
Os sindicatos têm dificuldade em abordar este tipo de sofrimento porque ele é invisível e intangível. É interessante que, na France Télécom, muitas das vítimas tinham um perfil semelhante: a maioria era composta por homens na casa dos 50 anos de idade que trabalhavam na France Télécom há mais de 30 anos e foram pressionados pela chefia a juntarem-se à “linha de frente” da empresa, vendendo produtos e serviços no call center. Lá eles eram submetidos a vigilância intensa, eram punidos se chegavam alguns minutos atrasados e tinham de pedir permissão para irem ao banheiro.
Estes técnicos perderam todo o senso de autoestima, autonomia e profissionalismo. Em vez de procurar beneficiar-se da experiência profissional deles, a empresa tentou apagar isso e reduzi-los a robôs falantes.
Até que ponto estes suicídios são uma maneira nova e extrema de protesto que reflete o colapso da tradicional mobilização coletiva?
Na France Télécom, os sindicatos foram consideravelmente enfraquecidos durante o período da privatização. A gestão procurou destruir as formas existentes de solidariedade entre os trabalhadores, incluindo a participação sindical. A mensagem passada era que cada trabalhador estava sozinho frente a chefia e tinha de carregar a responsabilidade pessoal pelos sucessos ou fracassos econômicos da empresa. A velha cultura de solidariedade e representação coletiva tinha de ser eliminada.
Os suicídios geralmente possuem uma dimensão social que procura alcançar fins estratégicos além da morte de uma pessoa. As cartas deixadas pelos indivíduos podem denunciar as condições de trabalho, apontar o dedo para os chefes ou pedir uma ampla mudança social. Em alguns casos, foi deixado um conjunto detalhado de documentos para permitir que outras pessoas preparem um processo legal contra a empresa. Esses são objetivos geralmente associados a protestos sociais.
O Observatório conseguiu mudar as coisas dentro da France Télécom e também num plano político mais amplo?
Sim, em 2010 os sindicatos e a gerência participaram de uma série de negociações para preparar um novo acordo sobre as condições de trabalho. Foi o próprio governo francês que insistiu que os executivos da France Télécom participassem dessas negociações.
Os novos acordos de trabalho determinam princípios para proteger o indivíduo do estresse excessivo e das pressões no trabalho. Estes princípios eram, na teoria, muito admiráveis, mas na prática o acordo nunca foi implementado e fez muito pouco em termos de mudanças concretas. No nível nacional, o governo ajudou a formar, em 2013, um novo Observatório Nacional de Suicídios, que monitora os níveis de suicídios por todo o país e providencia recomendações políticas para o governo.
Um dos nossos principais sucessos foi processar legalmente os chefes da France Télécom. No fim de 2009, fizemos uma queixa oficial contra a France Télécom e iniciamos uma ação legal contra a empresa. Como resultado, Didier Lombard foi colocado sob investigação judicial em relação aos 80 suicídios e tentativas de suicídio na empresa durante seu período como CEO. O vice CEO de Lombard e seu gerente de recursos humanos também estavam no banco de réus. O veredito do caso será anunciado em 2015. Em março de 2014, o Observatório colocou a France Télécom em “alerta grave” depois de acontecerem dez suicídios na empresa desde o início do ano.
Como você explica essa nova onda de suicídios?
É importante destacar, antes de tudo, que nem todos estes suicídios foram ligados às condições de trabalho. Eu também adicionaria que foram feitas algumas melhoras no trabalho. A gerência não usa mais táticas psicológicas que focam no indivíduo. A empresa registra, agora, cada caso de suicídio e nos comunica, depois de se recusar por muitos anos a reconhecer que os suicídios no trabalho sequer aconteciam. Ainda assim, a empresa ainda pratica uma política de demissões em massa que causa desespero entre os trabalhadores. Ela está realizando os maiores cortes de pessoal feitos por qualquer empresa francesa nas últimas duas décadas. Os objetivos econômicos ainda são buscados ao custo de vidas humanas.
Tradução: Jessica Grant Entrevista original publicada no site da Jacobin, revista independente de cultura e política, publicada trimestralmente em Nova York.