Está aberto para consulta pública, até 29 de fevereiro, o texto do decreto presidencial que vai regulamentar o Marco Civil da Internet, uma das leis mais avançadas em todo o mundo em termos de proteção aos direitos dos internautas.
Aprovado no Parlamento e sancionado pelo governo em abril de 2014, o Marco Civil já está em vigor há mais de um ano. Alguns trechos da lei, porém, até hoje aguardam regulamentação. E é este texto que pode, agora, reafirmar as conquistas que a nova lei trouxe ou desvirtuá-las.
O embate que vem sendo travado dentro do governo e que está refletido na proposta de decreto em consulta trouxe à tona, uma vez mais, o conflito de interesses entre as operadoras de telecomunicações e os usuários da rede, que já tinha marcado toda a tramitação do projeto de lei no Congresso.
Ao mesmo tempo em que reafirma uma internet livre, plural e aberta, alguns trechos do texto em debate podem, na prática, acabar com a neutralidade de rede, um dos pilares do Marco Civil da Internet.
O foco do conflito está na regulamentação das exceções à proibição a discriminação e degradação de tráfego de pacotes de dados na internet. Ou seja, em que situações em que isso pode ocorrer sem que represente uma violação à neutralidade.
O decreto trata de dois casos de degradação possíveis: a priorização de serviços de emergência – que faz todo o sentido – e o atendimento de “requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada de serviços e aplicações”. E é na determinação desses requisitos técnicos que mora o perigo.
O texto proposto (artigo 5o, incisos III e IV) abre uma grande brecha para que as operadoras de telecomunicações tratem o gerenciamento de tráfego na rede como algo recorrente, e não excepcional, como determina o Marco Civil da Internet. Na prática, a proposta em consulta deixa aberto o caminho para que as teles privilegiem determinados pacotes de dados de uma aplicação em detrimento dos de outra.
A diferenciação no tratamento de pacotes é algo que faz parte do funcionamento da rede. Aplicações de voz ou o streaming de video, por exemplo, já têm prioridade no fluxo da rede em relação a pacotes de dados de e-mails.
Afinal, um pequeno atraso na entrega de uma mensagem não prejudica tanto o serviço quando um vídeo que trava sem parar ou uma voz cortada chegando ao seu destinatário. O que não pode acontecer – e o decreto protege isso – é a priorização, por um determinado provedor, em função de acordos comerciais, de um mesmo tipo de aplicação em detrimento de outra, como favorecer o Whatsapp em relação ao Telegram; ou o Netflix em relação ao Popcorn Time.
O texto do decreto, porém, autoriza outros tipos de degradação do tráfego de dados. Abre exceção à neutralidade, por exemplo, para que as operadoras cumpram as metas de qualidade da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e para a “adequada fruição das aplicações, tendo em vista a garantia da qualidade de experiência do usuário”. Assim, a discriminação no tráfego de dados na rede, que deveria ser exceção, corre sério risco de ser tratada como corriqueira.
Não é difícil imaginar de quem foi a pressão para que essas duas situações fossem inseridas no texto. Para as operadoras de telecom, é muito melhor poder quebrar a neutralidade da rede do que ter que investir em infraestrutura para atender à mínima qualidade de navegação exigida pela Anatel – que está longe do desejável.
Usar a experiência do usuário como parâmetro também representa uma inversão na lógica da neutralidade: a rede funciona para o que o usuário está fazendo e não para suas infinitas possibilidades de navegação. Não se pode banalizar assim o gerenciamento de tráfego.
Para que a regulamentação esteja de fato de acordo com a lei que pretende detalhar, as hipóteses de discriminação devem ser restritas e, no caso dos requisitos técnicos, devem implicar justificativa às autoridades reguladoras e prazo para a resolução do que deveria ser encarado como um problema. É hora do governo ser coerente com a defesa dos princípios do Marco Civil e não ceder a mais esta pressão das operadoras de telecomunicações.
Privacidade
Outra questão central na regulamentação do Marco Civil diz respeito à coleta, armazenamento e acesso aos dados cadastrais, de conexão (data, hora e duração da conexão de um endereço IP) e de aplicação (quais sites e aplicativos foram acessados) dos usuários. Uma das grandes disputas na época da tramitação da lei foi justamente esta.
De um lado, setores vigilantistas defendendo a guarda e acesso a todos os dados dos internautas. De outro, organizações da sociedade civil em defesa da privacidade dos cidadãos e cidadãs. Houve conquistas, mas uma significativa derrota.
O Marco Civil obrigou provedores de conexão e parte dos provedores de aplicação a guardarem dados de navegação dos usuários e, em relação aos dados cadastrais (cuja guarda não é obrigatória), reiterou a autorização de seu acesso, sem ordem judicial, a “autoridades administrativas que detenham competência legal para a sua requisição”.
Para manter o princípio da privacidade, seria necessário explicitar, no decreto que regulamenta a lei, quais são essas autoridades. Considerando as leis já em vigor no país, como a Lei de Organizações Criminosas e a Lei de Lavagem de Dinheiro, seriam a polícia e o Ministério Público, sempre no contexto de investigações previstas nessas leis.
Com relação aos registros de conexão e de aplicação, cuja guarda é obrigatória pelos prazos de um ano e seis meses, respectivamente, seria fundamental que o decreto determinasse a destruição desses dados após o período indicado. Nos dois casos, o decreto não traz essas definições, e seria importante incluí-las.
Quem fiscaliza o respeito à lei?
Um terceiro ponto problemático da minuta do decreto presidencial é o que trata da atribuição de responsabilidades na fiscalização do cumprimento do Marco Civil. Embora inclua no ecossistema de fiscalização e regulação da internet a Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça (Senacon), o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e a Anatel, o texto em consulta dá destaque excessivo a esta última.
A competência da Anatel prevista em lei, porém, não abarca todas as questões presentes no Marco Civil e, em diferentes trechos do decreto, o texto dá maior consideração à agência reguladora na distribuição de tais funções.
O texto do decreto como um todo deve refletir o que está nos seus artigos finais, que a proteção aos direitos dos usuários na rede envolve um esforço conjunto de Cade, Senacon e Anatel na fiscalização e apuração de infrações.
Além disso, é preciso que se reforce o papel do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) no estabelecimento de diretrizes e resoluções a serem observadas nessa tarefa conjunta.
Trabalhar por tais mudanças no texto é fundamental para que o decreto que finalmente regulamentará o Marco Civil da Internet não represente um ataque aos seus princípios. Ao contrário, é preciso que ele reflita e reafirme os direitos conquistados durante o intenso processo de construção da lei.
Fazer esse debate por meio de uma consulta pública, com abertura para participação dos mais variados setores da sociedade, é fundamental. Mas ela só será um instrumento de construção legítimo se o governo efetivamente considerar as contribuições feitas neste processo e não ceder à pressão das teles. Do contrário, aquela que foi considerada a lei mais avançada sobre internet no mundo corre sérios riscos de morrer na praia.
por Intervozes — publicado 23/02/2016 09h23 – Carta Capital