Crise Política
Chegamos ao fim do sofrível ano de 2017. Sabemos, portanto, como começa 2018. A questão é imaginar como termina.
Temos diante de nós um dos momentos de maior instabilidade da história recente no Brasil, com a combinação explosiva de uma recessão profunda, retrocessos nos direitos sociais e crise política. O golpe escancarou uma ferida que não cicatrizará tão cedo.
Nesse sentido, 2018 será um ano tão decisivo quanto imprevisível. Será um ano de encruzilhada, especialmente por conta das incertezas do processo eleitoral.
A falência da Nova República, somada à decisão de setores dominantes de apostar na inviabilização da candidatura de Lula, pode levar a uma nova regressão democrática. Busquemos então tatear com os indícios que temos sobre o próximo ano.
A dita recuperação econômica fez água. A “confiança” não veio e nada indica que esteja a caminho. Como apontam os dados oficiais, o PIB permaneceu igual do segundo para o terceiro trimestre, com uma variação pífia de 0,1%.
Nada permite antever uma mudança relevante nessa rota. A política econômica que produziu esses resultados é a mesma que deverá permanecer no próximo ano. O “austericídio” não deixa luz no fim do túnel.
A defesa do ajuste fiscal como solução para o equilíbrio das contas públicas e para a retomada de novos investimentos não convence mais ninguém. Apesar dos cortes orçamentários draconianos, o déficit público continua a crescer. Sem a recuperação do investimento público não haverá crescimento. O regime fiscal instaurado pela Emenda Constitucional 95 aprofunda, porém, o caminho rumo ao abismo.
O desemprego é a face mais perversa da austeridade. A alardeada redução no índice de desemprego (queda de 4,4%) decorre, na verdade, da ampliação da informalidade. O desemprego não diminui, o subemprego aumenta.
Quase 100% das vagas geradas no setor privado neste ano foram informais, segundo aponta a pesquisa do IBGE. Empregos mais precários e com salários menores impedem a ampliação da massa salarial, frustrando o aquecimento do mercado interno e o aumento da arrecadação.
Não há nenhum dado objetivo que aponte para um cenário de recuperação expressiva em 2018. O mais provável é que a economia continue estagnada ou apenas saia do fundo do poço, com um índice positivo, mas insuficiente para se refletir em melhora na condição de vida dos cidadãos. Se assim for, Michel Temer encerrará seu mandato ilegítimo como o presidente mais impopular da história.
Os últimos dois anos foram marcados por forte retrocesso social, com a perda de direitos dos trabalhadores, o desmantelamento dos programas sociais, o aumento do desemprego e a volta da fome.
A situação deve agravar-se ainda mais com a plena implementação da reforma trabalhista. A reforma deixou em ruínas a CLT, que havia assegurado por quase 80 anos a regulamentação das relações de trabalho no País.
A essência da medida é reduzir o valor da força de trabalho, barateando os custos para o empresariado. As mudanças vão levar, na realidade, ao avanço generalizado da precarização, da informalidade e da contratação por hora, com redução salarial drástica.
Além disso, os impactos do congelamento de investimentos no Orçamento de 2018 poderão conduzir a um colapso da política social e dos serviços públicos. A medida impede novos investimentos, fixando por até 20 anos um limite para as despesas primárias do governo federal.
Está em curso a desidratação dos programas sociais, com a perspectiva de sangria gradual até morrerem de inanição. Na pasta de desenvolvimento social os cortes chegam a 97%. A educação também será afetada.
No comparativo com o Orçamento aprovado em 2017, a proposta do governo para o próximo ano prevê redução de 32% na educação superior, de 8,7 bilhões para 5,9 bilhões de reais. Nesse contexto, mais universidades poderão fechar. O SUS, por sua vez, terá corte estimado de 14%, o orçamento de 18,7 bilhões aprovado para 2017 passará a 16,1 bilhões de reais em 2018.
No caso da moradia, o problema aprofunda-se por causa do desemprego e do corte do Minha Casa Minha Vida. Dados da Fundação João Pinheiro mostram que a maior parte dos 6,2 milhões de famílias incluídas no déficit habitacional está na situação de “ônus excessivo com aluguel”. Em outras palavras, comprometem parcela elevada de sua renda para pagar o aluguel no fim do mês.
Com o aumento do desemprego e queda na renda, a situação torna-se insustentável. Como se não bastasse, o governo praticamente paralisou as contratações de obras por meio da Faixa I do Minha Casa Minha Vida, que atende as famílias de menor renda.
Com isso, evidentemente, as ocupações por moradia explodiram no País. O maior retrato é a Povo Sem Medo de São Bernardo do Campo, realizada pelo MTST em setembro deste ano e que atualmente conta com cerca de 8 mil famílias.
Fenômeno semelhante havia ocorrido em Guarulhos, em julho. Com o orçamento para moradia ainda menor no ano que vem, espera-se que o número de ocupações aumente drasticamente.
O cenário de 2018, provavelmente, será de agravamento da crise social, com arrocho salarial, piora dos serviços públicos e redução ainda maior do investimento do Estado.
Até aqui, apesar da gravidade dos retrocessos, isso não gerou reação social correspondente. A indignação generalizada, expressa num governo com aprovação de 3%, não se traduziu ainda em mobilização ampla. A relativa apatia pode durar mais tempo e atravessar 2018, mas não se pode descartar que a paciência popular esteja prestes a se esgotar. Veremos.
O cenário das eleições de 2018 segue imprevisível. A primeira pergunta é se de fato elas ocorrerão e em quais circunstâncias. A falência da velha Nova República e o vácuo de poder aberto ante a desmoralização do Congresso e a ilegitimidade do Executivo poderão deixar espaço para saídas antidemocráticas, como aquelas gestadas por setores do Judiciário.
Recentemente, o ministro Alexandre de Moraes pediu a inclusão na pauta de julgamentos do Supremo de uma ação que pode abrir brecha para o parlamentarismo.
Se os candidatos do establishment não decolarem e não conseguirem fazer frente à força eleitoral de Lula, não seria impensável a tentativa de se consumar um novo golpe com a mudança de regime. Soma-se a isso a possível tentativa, por parte do Judiciário, de interditar no tapetão a candidatura de Lula.
O ex-presidente segue em crescimento nas pesquisas e, como resposta, sua candidatura continuará a enfrentar um grande cerco judicial e midiático. Uma eventual condenação ou, no pior cenário, prisão poderá gerar reação popular.
Eles têm uma decisão difícil a tomar: se Lula é candidato, tem chances muito grandes de vencer e o golpe perde seu sentido histórico. Se o impedem, correm o risco de levar à convulsão o processo eleitoral e aprofundar ainda mais a crise de legitimidade do sistema político.
A cruzada para impedi-lo nos tribunais, baseada numa condenação sem qualquer prova, é parte de uma regressão democrática. Como tal, deve ser enfrentada com decisão por toda a esquerda e o movimento social.
Outra questão é a proposta que Lula apresentará ao País. Neste momento de encruzilhada, as margens de manobra para novos arranjos de composição social e política não são as mesmas: 2018 não é 2002. Não há mais espaço para qualquer avanço de direitos sociais sem enfrentar os privilégios da casa-grande.
Não há espaço para mudanças sem enfrentar a lógica desse sistema político. Pretender, neste quadro, reeditar uma estratégia de conciliação para, mesmo após o golpe, recompor alianças com o PMDB e os partidos tradicionais é um erro profundo, que deixará marcas para o futuro da esquerda e da luta popular no Brasil.
Do outro lado, a direita entra fragmentada na disputa eleitoral. O desgaste sofrido por seus partidos tradicionais, em especial o PSDB e o PMDB, abriu margem para supostos “outsiders”, como Jair Bolsonaro, e saídas mais extremadas à direita.
Esse fenômeno é resultado direto da crise de representação e do sentimento de antipolítica, os quais produzem em parte da população um desejo de ordem e soluções “moralizadoras”.
Não por acaso, setores do Exército defendem sem nenhum pudor uma eventual intervenção militar, como o fez o general Hamilton Mourão, em setembro. O cenário mais provável, hoje, é ter Geraldo Alckmin como candidato principal desse campo, em uma disputa por espaço com Bolsonaro e, eventualmente, com o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles.
Depois de três anos de forte instabilidade política, o que ocorrer em 2018 será decisivo para definir o próximo período histórico no Brasil. Teremos mais um ano agitado e imprevisível. Os dados estão lançados.
por Felipe Vono e Guilherme Boulos — publicado Carta Capital 15/01/2018