História Incomum – É em meio a uma luta diária e repetitiva que o jovem haitiano Luambo Pitchou exclama sua mensagem enquanto caminha pela ultracapitalista Avenida Paulista, em São Paulo: “Por favor, compreendam, nós não estamos roubando seus empregos”. Mais do que a dor pelo preconceito, esse estigma de roubo tem reforçado a necessidade do imigrante em optar por trabalhos ilegais como forma de se manter sóbrio e vivo em países como o Brasil.
O adendo do haitiano – que pode parecer incomum a quem ultrapassa indiferente à avenida – escancara uma circunstância cada vez mais corriqueira em relação à conjuntura encontrada por imigrantes. Em busca de oportunidades, eles abandonam toda a vida no país de origem para apostar o futuro de sucesso no Brasil. Mas não é bem assim.
De acordo com dados do Ministério Público do Trabalho (MPT), 106 casos envolvendo trabalho escravo foram deflagrados no Brasil durante o ano de 2015. Ao todo, as mais de 100 operações resgataram 860 trabalhadores submetidos a situações análogas à escravidão.
Conforme o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, o trabalho escravo pode ser configurado de quatro formas: condições degradantes (que excluam o trabalhador de sua dignidade); jornada exaustiva; trabalho forçado; servidão por dívida.
Coordenadora da Comissão Municipal de Erradicação do Trabalho Escravo (Comtrae) de São Paulo – a primeira instituição municipal a se dedicar ao fenômeno através de um sistema de contribuição paritária entre a sociedade civil e o governo –, Marina Novaes acredita que a falta de conhecimento e o “sentir-se escravo” podem ser considerados fatores importantes a serem notados por quem trabalha na erradicação desse tipo de crime.
“Muitas dessas pessoas sabem das condições que vão trabalhar. Quando participamos de resgate com o Ministério do Trabalho, eles não se veem como vítimas ou explorados. Prova disso é que em muitos casos a assistência só é procurada para reclamações de falta de pagamento. Eles não imaginam que estão submetidos à escravidão”, disse.
Outro ponto importante no sucesso da erradicação ao trabalho escravo é a compreensão da relação conselheira entre o imigrante recém-chegado e os que já vivem em situação análoga à escravidão. “O grande desafio é quebrar o ciclo entre as pessoas que convidam os imigrantes para trabalhar em situação degradante no Brasil.”
Entre algumas das importantes leis brasileiras de combate à escravidão está o Projeto de Emenda à Constituição (PEC) do Trabalho Escravo n° 57A, de 1999, sancionado em 2013 – considerado um dos maiores bastiões da lei brasileira de combate à escravidão – e que determina a expropriação e destinação à reforma agrária de propriedades rurais e urbanas nas quais o trabalho escravo for deflagrado (levando em consideração o artigo 149 do Código Penal).
A lei, no entanto, tem sofrido com a pressão da bancada ruralista do Senado, em especial a do senador Romero Jucá (PMDB-RR), que tem tentado reconfigurar o trabalho escravo no Brasil. De acordo com o Projeto de Lei do Senado (PLS) 432, de 2013, “a escravidão existe nas relações de trabalho em que o empregado tem restringido o seu direito de locomoção, é envolvido pelo patrão em dívidas impagáveis ou é forçado a trabalhar por meio de agressões físicas e psicológicas, pelo isolamento geográfico ou por meio da retenção de documentos”. Levando em consideração a proposta, são excluídas como “trabalho escravo” as condições degradantes e a jornada exaustiva.
“Os tempos são sombrios”, ressalta Marina. A coordenadora ainda revela a importância de estimular o contratante a manter-se dentro da legalidade. Há de se ressaltar a importância da Lei Paulista 14.946/2013, de autoria do deputado Carlos Bezerra Jr. (PSDB-SP), na contribuição para o sucesso dessa consciência empresarial. O projeto, que propõe a cassação da inscrição do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) dos proprietários das empresas flagradas na condução de trabalho escravo seria, segundo ela, importante por penalizar o empresário que não tiver “interesse em manter a regularidade dos funcionários de sua empresa”.
Conscientização
O acordo de residência do Mercosul, assinado em outubro de 2009 pelos Estados Partes e os Países Associados (Bolívia e Chile) propõe, mais do que um firmamento de livre migração entre cidadãos da América do Sul, mas uma remodelação do Estado como “promotor de ações efetivas para a garantia dos exercícios de migração”. Mais do que respeitar o acordo, é preciso se mover para fazer com que todos tenham noção do que é direito do cidadão sul-americano.
É este trabalho de conscientização por parte do Estado que a advogada da Missão Paz, Eliza Donda, defende. Responsável pelo atendimento jurídico aos imigrantes que chegam ao Brasil, ela acredita que uma remodelação na relação entre o poder público e os imigrantes seja algo de extrema necessidade.
“Nós (Brasil) não exploramos nossa embaixada na questão social. É tudo muito mais voltado para questões técnicas como a relação dos vistos e autorizações. O Brasil lidera a missão de paz da ONU no Haiti, mas poderia ser muito maior. É preciso aproximar o imigrante do serviço público através de algo mais humanizado.”
Além da responsabilidade do Estado em aprimorar a relação com quem chega ao Brasil, ela pontua a obrigatoriedade em tornar o próprio cidadão brasileiro consciente do que acontece no país em relação à escravidão. Para ela, é algo que se constrói diariamente a partir da atuação da interação entre pessoas.
“É fundamental que o Estado se construa de pessoa. Temos a mania de achar que o único responsável por fiscalizar é o órgão público, quando devia existir uma cultura de atuação civil. São duas questões principais nessa falta de atuação da sociedade: falta de informação e receio por represálias.”
Concentrado na costura
Na bagagem da família Muñoz, o que mais pesavam eram as expectativas. Não era a primeira vez que eles viriam ao Brasil, já tinham feito este trajeto alguns anos antes de 2015. Mas agora havia um convite. Um trabalho mudaria tudo. E, como todo pobre em busca de uma vida melhor, eles migraram. José, sua esposa Maria, ambos com 28 anos, e os três filhos, Alexsander (10), Sthefany (7) e Anahi (1). O destino: Itaquaquecetuba, São Paulo.
Nos primeiros meses no Brasil eles ficaram hospedados na casa da irmã de Maria. As irmãs de mesmo nome, embora composto – a recém-chegada, Inês, e a anfitriã, Izabel – não têm apenas isso em comum: ambas sabem costurar. Ambas sabem costurar por horas a fio. Ambas carregam na memória a lembrança dolorosa de como aprenderam isso. E no trajeto por essas recordações Maria Izabel (30) dá lugar à história recente de Maria Inês.
Cansada das constantes brigas de seus filhos com os primos, Maria conversa com José sobre a necessidade de se mudarem. Dias depois dessa conversa o casal recebeu um convite para trabalhar numa oficina de costura. “A pessoa me disse: vem pra casa. Mas não conta nada pra sua irmã”, relata Maria. Animada com o novo emprego e a possibilidade de sair da casa da irmã, ela não pensou duas vezes: “Voltei, peguei algumas coisas e nos mudamos. Não desconfiei porque era um amigo”.
O que eles não esperavam é que sua rotina de trabalho seria das 7h de um dia às 3h de outro, de segunda a segunda. “A gente tinha três refeições. Uma às sete horas, outra ao meio-dia e depois só às dez da noite. A gente dividia a comida com as crianças porque eles não tinham direito a alimentação” conta o casal. Enquanto eles trabalhavam para ganhar R$ 0,10 por peça produzida, as crianças ficavam trancadas num quarto no andar de cima da casa. Foram seis meses nessas condições, até conseguirem fugir.
A história da família Muñoz encarna o drama dos 272 trabalhadores resgatados, entre 2010 e 2015, por auditores fiscais, em São Paulo, além de todos aqueles que ainda permanecem em trabalho análogo a escravidão.
Segundo a Jornalista Bruna Miranda, diretora de Comunicação da organização Fashion Revolution, que está presente em 83 países e trabalha com a conscientização do consumo consciente da moda, as demandas da chamada fast fashion, que inseriu no mercado coleções além das estações do ano, acelerou o processo inteiro de produção das indústrias.
Bruna explica que as pessoas passaram a dar menos importância às roupas que compram devido ao valor baixo que pagam. “Com isso, os fornecedores espremem o pagamento do funcionário a centavos para ter uma margem de lucro mais alta – como o preço da roupa é muito baixo, o funcionário ganha muito pouco. Assim, ele (fornecedor) consegue produzir muito.”
Para a jornalista, os objetivos das empresas fast fashion se resumem em dois pontos: primeiro, fazer as pessoas comprarem já que a qualidade da roupa não é boa e tem pouca durabilidade. Segundo, convencê-las de que precisam seguir a tendência ditada pela mídia. Já que mudar ficou bem mais barato, descartar ficou mais fácil.
Contudo, nos resta a pergunta lançada numa campanha da Fashion Revolution: “Quem fez minhas roupas?” Que a resposta seja capaz de nos levar à mudança.
por Leandro Barbosa e Matheus Narcizo publicado 28/03/2016 18:54 – Rede Brasil Atual