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(CONTRA)REFORMAS

As reformas aumentam a exploração e ameaçam a vida dos trabalhadores

08/06/2019 - 7h00 - Sinttel-ES - Tânia Trento | Jornalista | Reg. Prof. 0400/ES
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Maria Lúcia Lopes da Silva detalha por que os projetos de alteração nas leis trabalhista e previdenciária devem ser chamados de contrarreforma

As reivindicações da classe trabalhadora organizada pela ampliação de direitos trabalhistas eram compreendidas como reforma. Para a professora e assistente social Maria Lúcia Lopes da Silva, o neoliberalismo se apropriou do termo para “escamotear suas intenções de restringir direitos da classe trabalhadora”.

No Brasil de hoje, as chamadas “reformas”, seguem esse roteiro. Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, a assistente social afirma que as alterações nas leis trabalhista e previdenciária se constituem “no máximo da exploração”, causando até “risco de vida”. Portanto, Maria Lúcia aponta que o que está tentando ser posto em vigor no Brasil são “contrarreformas”.

A assistente social aponta que essas contrarreformas se potencializam, pois o orçamento da Seguridade Social tem como “base fundamental as contribuições dos empresários e trabalhadores”. Desse modo, como a contrarreforma trabalhista aumentou o desemprego e o trabalho informal sobre o formal, “tudo isso, associado à renúncia tributária das empresas, impacta o financiamento da seguridade e serve como argumentos em favor do desmonte dos direitos previdenciários, sob a alegação de que o seu financiamento é insustentável”.

Segundo Maria Lúcia, a contrarreforma da Previdência, da forma como está tramitando no Congresso, pelo Projeto de Emenda Constitucional 06/2019, acaba com a contribuição coletiva e o orçamento único da Previdência e, por consequência, “significará o fim da seguridade”. Essa sucessão de projetos afeta, de forma direta e indireta, as áreas da saúde e da educação públicas e a assistência social para desempregados e pessoas em situação de rua.

Maria Lúcia Lopes da Silva é graduada em Serviço Social pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA, mestra e doutora em Política Social pela Universidade de Brasília – UnB, e realizou estágio pós-doutoral em Planejamento e Gestão de política social e serviços sociais (Pianificazione e Gestione delle Politiche e Servizi Sociali – Progest) na Universidade de Milão – Bicocca, na Itália. Atualmente é professora da UnB e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Seguridade Social e Trabalho – GESST/UnB.

Confira a entrevista.

IHU On-Line — Por que a senhora compreende as alterações nas legislações trabalhista e previdenciária como “contrarreformas”? Poderia descrever alguns pontos que reforçam esse entendimento?
Maria Lúcia Lopes da Silva — Historicamente, os trabalhadores sempre lutaram por reformas, compreendendo-as como ampliação de direitos. A partir da década de 1970, com o surgimento e expansão do projeto neoliberal, seus teóricos e estrategistas se apropriaram da palavra “reforma” para escamotear suas intenções de restringir direitos da classe trabalhadora. Essa estratégia funciona como mistificação ideológica, como disse o saudoso Carlos Nelson Coutinho , em seu texto “A hegemonia da pequena política”, de 2010. Por isso, se uma medida amplia direitos eu a chamo de reforma, reforçando a compreensão histórica da classe trabalhadora; se restringe direitos eu a denomino de “contrarreforma”, como o faz, desde 2003, Elaine Behring , em seu livro, Brasil em contrarreforma . As mudanças ocorridas na legislação trabalhista e previdenciária nos últimos anos são restritivas de direitos, por isso são contrarreformas. Citarei exemplos.

A contrarreforma trabalhista
A lei 13.467, que passou a vigorar, em novembro de 2017, após 120 dias de sua publicação no Diário Oficial, é o mais importante instrumento de contrarreforma trabalhista no governo Temer. Modificou mais de 100 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT e cerca de 400 dispositivos legais que regulam as relações de trabalho no Brasil. No conjunto, as mudanças impõem grande perda de direitos aos trabalhadores. Cito exemplos. Antes da Lei, a quem trabalhava 8 horas era assegurado um intervalo de almoço entre 1 e 2 duas horas. A mudança reduziu o intervalo para 30 minutos. Isso é regressão de direito e aumento da exploração.

Outro exemplo é a liberação irrestrita para a terceirização. Antes da lei, a terceirização era permitida para algumas áreas consideradas não essenciais, como a segurança e limpeza dos ambientes de trabalho. Com a lei, esta e outras formas precárias de trabalho (trabalho parcial, temporário etc.) foram intensificadas e liberadas para as áreas essenciais, o que tem reduzido as contratações por tempo indeterminado, com todos os direitos assegurados pelo artigo 7º da Constituição Federal. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – Dieese , o salário de trabalhadores terceirizados é 24% menor do que o dos empregados formais; o índice de rotatividade no mercado de trabalho é quase o dobro dos empregados diretamente contratados; os terceirizados trabalham 3 horas a mais por semana, em média, do que os contratados diretamente. Tudo isso são prejuízos e regressões de direitos sendo estendidos a um número cada vez maior de trabalhadores. Sem falar que essa grandiosa exploração dos trabalhadores terceirizados termina por alimentar o desemprego, na medida em que, com menos trabalhadores trabalhando mais, evitam-se novas contratações.

A lei criou mais duas formas de contratação prejudiciais à classe trabalhadora. A contratação do autônomo, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não sem que este seja considerado empregado, com todas as garantias. Essa situação tem levado à demissão de milhares de trabalhadores para que esta figura “ falseada do autônomo contratado” assuma seus lugares. Isso favorece os patrões e prejudica os trabalhadores, pois os autônomos não possuem contrato de trabalho registrado em carteira e vários direitos previstos no artigo 7º da Constituição Federal, como férias, décimo terceiro salário, salário mínimo, jornada máxima de trabalho, entre outros. Além disso, sua aposentadoria segue regras diferenciadas, sem a participação do empregador na contribuição.

Isso é redução de direitos, é contrarreforma. O trabalho intermitente é uma nova modalidade de trabalho criada pela Lei 13.467/2017, definida como o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, o trabalhador só trabalha quando é chamado pela empresa e só será pago pelo tempo que trabalhar. Assim, não terá garantia de jornada nem de renda mínimas. Ademais, o pagamento de direitos como 13º salário, férias, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS e repouso semanal remunerado será sempre proporcional às horas trabalhadas. Esse trabalhador ficará à disposição do empregador, porém, na hora, dia, mês (conforme seja o contrato) que este precisar dele, e se não estiver disponível, pagará uma multa correspondente a 50% do valor que ganharia. É o máximo da exploração. No mesmo nível, até de risco de vida, encontra-se o fim da proibição para que mulheres gestantes ou lactantes possam trabalhar em condições insalubres. Assim, esses exemplos de reduções de direitos nos levam a falar em contrarreforma, e não em reforma trabalhista.

A contrarreforma da Previdência
Na área de Previdência Social são inúmeros os prejuízos já estabelecidos, desde a década de 1990, como a substituição da aposentadoria por tempo de serviço pela aposentadoria por tempo de contribuição ocorrida, em 1998. Pela primeira modalidade, bastava o trabalhador apresentar a carteira assinada ou contrato de trabalho para que o tempo de serviço fosse computado para fins de aposentadoria. Na segunda modalidade, o tempo de recolhimento também precisa ser comprovado; se a empresa o fez, mas não repassou à Previdência Social, quem se prejudica é o trabalhador, que não poderá contar este tempo.

Outro exemplo é o fim do valor da aposentadoria correspondente ao último salário ou remuneração, como foi estabelecido na Constituição Federal de 1988, substituído pelo cálculo por meio do fator previdenciário, que reduz até 40% o valor da aposentadoria em relação ao último salário ou remuneração, em 1999. Mais um exemplo foi a obrigatoriedade para que os servidores públicos aposentados, a partir de 2003, continuassem a contribuir com a Previdência Social, sobre o valor de seus proventos de aposentados que superem o teto dos benefícios previdenciários do Regime Geral de Previdência Social. Isso também é regressão de direitos. É contrarreforma.

As propostas em debate, na atualidade, por meio da PEC nº 06/2019, se aprovadas também significarão enormes prejuízos aos trabalhadores. Elas apontam para a elevação do tempo e dos percentuais de contribuição, associados à redução do tempo de usufruto e dos valores dos benefícios. Um exemplo disso é a proposta de elevar de 15 para 20 anos o tempo de contribuição da mulher trabalhadora rural, associado à elevação de sua idade de 55 para 60 anos, para poder alcançar uma aposentadoria, no valor de um salário mínimo. É uma proposta desumana. A maior parte dos trabalhadores e trabalhadoras rurais nem alcançarão essa idade. Além disso, a forma de contribuição desses trabalhadores será modificada.

Atualmente, se trabalham em regime de economia familiar, a contribuição será de 2.1% sobre a comercialização dos produtos do grupo familiar. Se estes não forem suficientes para a comercialização, basta que o tempo de trabalho seja comprovado. Mas, se passar a PEC 06/2019, este grupo familiar deverá pagar um valor mínimo, que corresponderá a 600 reais, imediatamente após a aprovação da PEC e depois será reajustado.

Assim, não ficam dúvidas sobre as razões pelas quais estas mudanças são consideradas contrarreformas e não reformas!

IHU On-Line — Qual o papel da Seguridade Social no Brasil hoje?

Maria Lúcia Lopes da Silva — A Seguridade Social como um sistema para viabilizar direitos relativos à Saúde, Previdência e Assistência Social é a maior conquista da classe trabalhadora no campo das políticas sociais. Os benefícios previdenciários e assistenciais constituem a principal renda das famílias que vivem com até dois salários mínimos no Brasil. De acordo com os dados oficiais, o Benefício de Prestação Continuada – BPC atualmente é a renda de três milhões e 600 mil pessoas, destas dois milhões são pessoas idosas, com idade acima de 65 anos, e um milhão e 600 são pessoas com deficiências, todas com renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo. Sem estes benefícios, estas pessoas não teriam como garantir sua sobrevivência. Assim, o BPC é um importantíssimo instrumento de redistribuição de renda que, além de reduzir a pobreza extrema e as desigualdades sociais, garante a vida de milhões de pessoas. Os benefícios previdenciários cobrem, atualmente, cerca de 30 milhões de pessoas. Cerca de 86% destes benefícios possuem o valor de até 2 salários mínimos e possuem importância vital à classe trabalhadora.

Contrarreforma ataca também a saúde
A Saúde, como um direito de todos e dever do Estado, apesar do processo de privatização que tem sofrido, tem no Sistema Único de Saúde o único meio de acesso aos serviços de saúde para a ampla maioria da população brasileira. Assim, a Seguridade Social, ainda que restrita à Saúde, Previdência e Assistência Social, é de fundamental importância para a sociedade brasileira, especialmente para a classe trabalhadora que depende dos serviços públicos. É o mais importante instrumento de redistribuição de renda e redução de desigualdade social. Se aprovada, a PEC nº 06/2019 irá destruí-la, como falarei adiante.

IHU On-Line — Em recente artigo, a senhora escreveu que as reformas trabalhista e previdenciária “são intrínsecas e se potencializam”. Qual é essa relação existente entre elas?

Maria Lúcia Lopes da Silva — Ainda que a Previdência Social seja financiada pelo orçamento único da Seguridade Social, constituído por fontes de bases diversificadas (contribuição dos trabalhadores, dos empresários, dos importadores de bens e serviços do exterior, um percentual sobre as receitas dos jogos de loterias, as contribuições sobre o lucro líquido das empresas e os orçamentos da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios), a base fundamental desse orçamento são as contribuições dos empresários e trabalhadores.

O fim dos direitos trabalhistas deteriora a Previdência
Se ocorre desemprego, rotatividade no trabalho, se os salários são reduzidos, isso impacta diretamente o financiamento da Seguridade Social, especialmente na Previdência Social, uma vez que as contribuições sobre a folha de pagamento são vinculadas, pela Constituição Federal, ao pagamento de benefícios previdenciários. Temos presenciado, após a contrarreforma trabalhista, o aumento do desemprego. Atualmente, são mais de 13 milhões de desempregados, e o trabalho informal, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, amplamente divulgados, superou o trabalho formal, a massa salarial teve uma grande queda na participação no PIB, a rotatividade no trabalho aumentou com a adoção das novas modalidades de contratação precárias, e tudo isso, associado às renúncias tributárias das empresas, impacta o financiamento da seguridade e serve como argumentos, em favor do desmonte dos direitos previdenciários, sob a alegação de que o seu financiamento é insustentável.

O contrário também é verdadeiro: se ocorre uma melhoria nos indicadores gerais do trabalho, mais emprego formal, melhores salários, maior estabilidade no emprego, a cobertura previdenciária melhora e também o financiamento da Seguridade Social. Essa é uma pequena amostra da vinculação intrínseca entre as contrarreformas trabalhista e previdenciária.

IHU On-Line — O projeto de reforma da Previdência como tramita hoje no Congresso, caso aprovado, atinge quais políticas sociais?

Maria Lúcia Lopes da Silva — A PEC nº 06/2019 é muito ampla e afetará diretamente toda a Seguridade Social (Saúde, Previdência e Assistência Social), além das relações de trabalho. Indiretamente afetará outras políticas, como a educação. Vejamos algumas propostas que confirmam o que estou dizendo.

As áreas afetadas pela contrarreforma da Previdência
A primeira proposta que destaco é a que pretende fazer uma segregação contábil do orçamento da Seguridade Social, reforçando a natureza contributiva da Previdência. Essa proposta, se aprovada, destruirá a forma de contribuição solidária que sustenta a seguridade até hoje. É porque o orçamento é único, sem segregação, que se faltar recurso em uma das áreas é possível cobrir remanejando de outra. É também por isso que é possível manter os cerca de seis milhões de benefícios previdenciários aos trabalhadores rurais, cujos beneficiários possuem uma diminuta participação no custeio, pelas dificuldades decorrentes da natureza de seu trabalho, em geral, em regime de economia familiar, e de peculiaridades da produção rural, como a sazonalidade de alguns produtos comerciáveis. O fim do orçamento único significará o fim da seguridade.

Outra proposta que se for aprovada impedirá que milhões de trabalhadores tenham acesso à Previdência Social é a implantação do sistema previdenciário de capitalização individual. Isso significa que cada pessoa deve contribuir individualmente para a sua Previdência, criando uma espécie de poupança que será gerida por instituições financeiras. Como, de acordo com a PEC 06/2019, a única forma possível de contribuir será a partir de uma contribuição definida, esta ficará sujeita ao mercado (inflação, crises das instituições gestoras etc.) e o benefício futuro do poupador corresponderá, em valor e tempo de duração, ao que for possível, a partir do volume de recursos acumulados com as contribuições definidas.

Pensando na realidade brasileira, atualmente, quantos trabalhadores poderão fazer uma contribuição mensal para esse sistema? Se for pequena a contribuição, não resultará em nada no futuro, se for elevada, pouquíssimos poderão arcar e ainda assim estarão sujeitos às intempéries do mercado. Segundo a Organização Internacional do trabalho – OIT, em documento divulgado em dezembro de 2018, entre 1981 e 2018, 30 países optaram por este modelo de previdência privada, porém 18 já desistiram. O modelo só beneficiou o capital financeiro, provocou maior desigualdade social, maior desigualdade de gênero, prejudicando principalmente as mulheres, os valores dos benefícios caíram muitíssimo e milhões de pessoas deixaram de ter acesso à Previdência. Portanto, isso será o fim da Seguridade Social no Brasil e da Previdência Social. Isso afetará milhões de trabalhadores e, consequentemente, outras políticas sociais no país.

Precarização dos professores é precarização da educação
A PEC ainda propõe mudanças drásticas em relação ao BPC destinado aos idosos, de modo que este seja acessado apenas para as pessoas em condições de miserabilidade (renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo e patrimônio inferior a 98 reais) e tenha 70 anos ou mais. A partir dos 60 anos, idosos com estas características poderão ter acesso a 400 reais. Sem muitos comentários, é possível perceber que o BPC será completamente descaracterizado e milhões de pessoas não terão acesso a esse benefício, seja pelos critérios de “miserabilidade” ou pela idade de 70 anos.

A proposta de vinculação da idade de 60 anos a 30 anos de contribuição, com atividade somente na docência, para que professores e professoras alcancem a aposentadoria, além de inibir o acesso a este direito, poderá afetar a qualidade da educação. Não será fácil assegurar qualidade no ensino tendo, fundamentalmente, professores com 60 ou mais anos dando aulas para crianças e adolescentes.

IHU On-Line — Qual a situação de seguridade social para as pessoas em situação de rua, desempregados e trabalhadores informais hoje? O que muda com o projeto de reforma da Previdência?

Maria Lúcia Lopes da Silva — Hoje os desempregados e pessoas em situação de rua, com limites, ainda acessam alguns serviços e benefícios de saúde e assistência social, como o BPC, o Bolsa Família, o benefício De volta pra casa, os serviços de atenção básica da saúde, os CREAS PoP. Se a contrarreforma passar, parte desses serviços e benefícios deixarão de existir.

IHU On-Line — Deseja acrescentar algo?

Maria Lúcia Lopes da Silva — Sim, que nem tudo está perdido. É preciso que trabalhadores e trabalhadoras resistam e lutem em defesa de seus direitos, com todas as forças e instrumentos de luta que puderem utilizar (atos públicos, greves, pressão junto aos parlamentares etc.). Eu continuarei lutando em defesa dos direitos sociais e da seguridade social. Só a luta garante a vida! ■


Wagner Fernandes de Azevedo – Revista do Instituto Humanitas Unisinos  EDIÇÃO 535 | 29 ABRIL 2019


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