Operadores denunciam assédio moral, exploração, humilhações por não cumprir metas e escala para funcionárias engravidarem.
No ramo de serviços, o setor de telemarketing é o que mais cresce no Brasil. Em três anos, a oferta de postos de trabalho mais do que triplicou.
“A empresa vai te trazer metas irreais, que não existem”, diz uma ex-operadora.
Já são 1,5 milhão de trabalhadores. “São metas absurdas, são abusivas demais”, diz uma ex-operadora.
Ao todo, 64% deles têm entre 18 e 29 anos. “É uma pressão tão forte que você não consegue administrar”, diz uma ex-operadora.
Quando você precisa do telemarketing, o único contato é com a voz do profissional ao telefone. O Fantástico foi saber o que acontece do outro lado da linha.
“Para mim, era um conto de fadas. Aquelas mesas com computadores, aquelas cadeiras boas de sentar”, afirma uma ex-operadora.
O entusiasmo da ex-operadora virou desilusão nove meses depois de ser contratada para o primeiro emprego. A voz dela começou a falhar.
“Eu iniciava a jornada de trabalho com uma voz, uma hora e meia depois, eu estava rouca. Quando eu saía do trabalho, eu estava sem voz”, relembra.
Ela descobriu que estava com dois nódulos nas cordas vocais e foi afastada do atendimento ao público. A ex-funcionária conta que passou a ser ridicularizada na empresa. “Lixo. Eu fui apelidada de lixo”, conta.
E afirma que as agressões vinham dos chefes dela. “Foram oito meses de choro. De choro, de choro, de choro”, diz a ex-operadora.
Ela procurou ajuda psiquiátrica. Tinha desenvolvido síndrome do pânico. “Eu tinha medo de dormir. Quando o sono vinha, eu mesmo me despertava com medo de dormir e ter os pesadelos, ter os sonhos com aquele ambiente de trabalho no qual eu vivi”, relembra.
Em uma festa para o diretor da empresa, a operadora foi obrigada a encher centenas de bexigas. “Teve um dia que, de uma só vez, eu enchi 300 bolas. Não tinha bombinha, eu enchi na boca”, conta.
“Um supervisor cortou meu cabelo”, conta outra operadora.
O Fantástico encontrou outras histórias de humilhação, como a de uma mulher que diz ter sido agredida por não cumprir as metas. “Ele voltou para mesa dele e jogou o cabelo no lixo”, afirma.
As vítimas preferem não mostrar o rosto, porque ainda trabalham no setor e temem represálias.
“Todas aquelas pessoas, todos aqueles olhares e principalmente, o que mais marcante ficou foi a risada dele depois de ele ter cortado meu cabelo”, diz a operadora.
“Eu parei de amamentar o meu filho aos cinco meses por causa do antidepressivo. Eu tinha pavor mesmo de ir trabalhar”, conta outra operadora.
Outra operadora conta que, durante a gravidez, teve uma infecção urinária porque a empresa controlava o tempo de ir ao banheiro. “Você tem cinco minutos para ir no banheiro”, conta.
Cinco minutos era o tempo total, em um expediente de seis horas.
Fantástico: Você grávida, com vontade de ir ao banheiro, qual era a orientação que te davam?
Operadora: Não. Segura.
“A minha gerente montou uma planilha e organizou uma escala onde as funcionárias deveriam engravidar pela ordem”, diz uma ex-operadora.
Uma escala de gravidez. Acontecia em uma empresa em Minas Gerais. “Quem fosse engravidar teria que avisar com seis meses de antecedência”, conta a operadora.
A prioridade na escala de gravidez era para mulheres casadas e sem filhos. Depois, as casadas que já tinham filho. As solteiras não podiam nunca.
“No meu caso, eu era casada e já tinha um filho, então eu não poderia ter outro. Eu tinha que esperar quem não tinha ter filho primeiro”, afirma a operadora.
Mas a funcionária queria o segundo filho. Ela entrou na Justiça contra a empresa, a BrasilCenter, e foi indenizada. Em email ao Fantástico, a BrasilCenter explicou que a escala de gravidez foi um ato indevido de uma gestora que não está mais na equipe.
Quase 80% dos operadores de telemarketing são mulheres. A procuradora do Ministério Público do Trabalho diz que em muitas empresas são comuns essas interferências abusivas na vida pessoal das funcionárias.
“Não é só escala de gravidez, não. O empregador quer controlar o ciclo menstrual da mulher porque, quando ele souber que ela está no período fértil, eles falam: ‘olha não esqueça que você está em sua semana fértil. Essa semana você não pode ter relações'”, diz Renata Coelho, procuradora do Ministério Público do Trabalho.
O advogado da ex-funcionária da BrasilCenter acompanha outros casos na Justiça.
“Um supervisor, por não ter levado a sua equipe a bater a meta, foi colocado no eles chamam de dinâmica motivacional, colocaram uma roupa de prisioneiro nele. Uma outra funcionária se vestiu de policial militar, e colocaram ele de quatro na frente da equipe inteira”, conta Nélio Gouvêa Almeida Martins, advogado trabalhista.
Restrições de horários, invasão de privacidade, assédio moral. Todas as situações relatadas à reportagem do Fantástico têm sempre o mesmo motivo: forçar os funcionários a atingirem as metas.
Fantástico: O que é mais importante? Satisfazer o cliente ou bater a meta?
Operadora: Bater a meta.
Preste atenção no que outra mulher revela – ela trabalha no setor de retenção de uma empresa de telemarketing. De dez clientes que querem cancelar um contrato, ela só pode fazer um cancelamento. Os outros nove clientes, ela é obrigada a reter.
“Nove têm que ficar, essa é a meta. Se não ficar, você perde a sua meta, você não ganha dinheiro, você é perseguido o tempo inteiro pela empresa, você vai ser o patinho feio da equipe”, revela a funcionária
Para evitar que nove em dez consumidores consigam o que querem, vale tudo.
“Aquele funcionário certinho, que atende tudo muito bonito, atende o cliente bem, trata o cliente bem, não consegue bater meta. Se você falar com muita clareza, de forma detalhada e explicada para o cliente, você não vai reter absolutamente nada”, conta a funcionária.
Fantástico: Então a orientação é confundir?
Funcionária: De forma induzida, sim.
A empresa onde ela trabalha é a Contax. A mesma empresa em que trabalhava a operadora que teve o cabelo cortado. E também a que desenvolveu síndrome do pânico.
Procurada pela reportagem, a Contax respondeu, em nota, que não teve conhecimento, pelos canais de comunicação da empresa, de nenhum dos acontecimentos citados. E afirmou que vai apurar todas as denúncias, dizendo que elas estão em desacordo com os princípios da empresa.
A funcionária que só tinha cinco minutos para ir ao banheiro trabalhava na empresa Almaviva. Também por nota, a Almaviva negou que estipule tempo de uso dos sanitários.
Um projeto de lei que regulamenta as condições de trabalho em telemarketing foi apresentado em 2007 e ainda aguarda o parecer da Câmara dos Deputados em Brasília.
“Nós chamamos hoje os telecentros de senzalas modernas, porque os trabalhadores não têm direito nem a ir ao sanitário”, afirma Joselito Ferreira, Federação Nacional dos Trabalhadores em Telecomunicações
“É um ambiente completamente permeado de assédio, de violência, de constrangimento e de muito sofrimento”, diz Ana Soraya Vilas Boas, Fundacentro Ministério do Trabalho e Emprego.
Mostrando o rosto, outros operadores confirmam o sofrimento do lado de lá do telefone.
“Pausa banheiro: 5 minutos. Almoço: 20 minutos”, diz a operadora de telemarketing, Elaíne Souza.
“O que você treina, o que você recebe a todo momento é que você tem que manter o cliente a qualquer custo”, diz a operadora Bruna Peleteiro.
“Você entra em uma empresa com sonhos e você sai traumatizado”, relata a operadora Dóris Queirós Vieira.
“Nós falamos, às vezes, da importância da primeira infância. Eu costumo comparar com a importância do primeiro emprego. Então, ele está ali, no primeiro trabalho, cheio de expectativas e de repente ele pensa: ‘isso é trabalhar?’ Isso não é trabalho, isso é castigo. O prazer do trabalho, a dignidade pelo trabalho, o valor do trabalho, às vezes, nunca mais vai conseguir ser desenvolvido nessa pessoa, dependendo da situação que ela se submeteu ou que ela viu outra pessoa se submeter nesse ambiente”, diz a procuradora.