CULTURA DO ENCARCERAMENTO
Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen Mulheres, a população carcerária feminina aumentou 567,4% entre 2000 e 2014. No mesmo período, a média de homens presos cresceu 220,2%, evidenciando que os efeitos da política de encarceramento em massa posta em prática no Brasil afeta ainda mais as mulheres. Ao todo, o país tinha 579 mil pessoas presas em 2014 (atualmente são cerca de 620 mil), sendo 37.380 mulheres e 542.401 homens. Com esses números, o Brasil ocupa a quinta colocação no ranking das maiores populações femininas encarceradas do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos (205 mil), China (103 mil), Rússia (53 mil) e Tailândia (44 mil).
“Infelizmente, o Judiciário tem a cultura do encarceramento. Não é razoável abrir processo por furto de ‘porcaria’”, define Maíra Coraci Diniz, defensora pública de São Paulo que atua no caso da mulher presa em Matão, em novembro de 2016, por furtar ovos de Páscoa e duas bandejas de 500 gramas de peito de frango. O furto aconteceu em março de 2015.
A defensora afirma que há muitos casos semelhantes a esse em razão da aplicação “nua e crua” da lei penal, uma prática que, para ela, nem sempre é justa. A reincidência é um fator que pesa contra as mulheres acusadas de crimes semelhantes, como foi o caso dessa pessoa que a defensora pública tenta tirar da cadeia. Ao negar o pedido de habeas corpus, o juiz lembrou que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) já havia mantido a pena devido ao fato de a ré ser reincidente, além de ter feito o furto enquanto cumpria pena em regime aberto.
“A lei quer proteger o patrimônio alheio ao proteger produtos, uma coisa pequena que não afeta o patrimônio em geral. Temos que analisar quais os efeitos da conduta na sociedade. Ovo e frango geram uma lesividade? Não é razoável”, pondera Maíra Diniz. “Ultimamente se vê que a Justiça é uma loteria. Depende da cabeça do juiz.”
De acordo com o estudo publicado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), 15% das mulheres presas no Brasil são por crimes de furto e roubo. Do total da população carcerária feminina, 63% estão condenadas com penas de prisão de até oito anos, um dado que, segundo o Depen, “revela a persistência da pena de prisão como medida sancionatória, inclusive para os casos de crimes menos graves, impactando de forma geral o total da população de mulheres encarceradas no Brasil”.
Desde a promulgação da Lei de Drogas, em 2006, o tráfico tem sido o principal motivo que coloca as mulheres atrás das grandes, sendo responsável por 58% das prisões – índice que entre os homens gira em torno de 23%. A maioria das mulheres presas por tráfico, entretanto, têm uma posição de coadjuvante, normalmente usadas como “mulas” no transporte da droga, envolvidas em pequenos comércios ou, ainda, simplesmente presas em flagrante junto com o traficante namorado ou marido. Poucas têm atividades de gerência do tráfico.
De modo geral, o perfil da mulher presa no Brasil é de uma pessoa jovem, a maioria abaixo dos 34 anos, sendo 68% negras e 50% sem ter completado o ensino fundamental.
Coordenadora nacional da Pastoral Carcerária para a Questão da Mulher, a irmã Petra Silvia Pfaller critica a diferença nas condições de acesso à Justiça entre mulheres de distintos padrões econômicos. Embora ressalte o empenho dos defensores públicos, ela avalia que eles não conseguem suprir a alta demanda e assim, na prática, mulheres com mais dinheiro conseguem se defender melhor.
“Uma mulher com poder econômico tem mais chance de se defender do que uma pobre. Percebemos na nova geração de defensores um empenho muito bom, mas mesmo assim não dão conta e as mulheres com menor poder aquisitivo não têm uma devida defesa”, analisa.
Como exemplo, ela cita o recente caso de Adriana Ancelmo, ex-mulher do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que conseguiu obter a prisão domiciliar em função de ter filhos pequenos para criar.
“O Poder Judiciário age de uma maneira seletiva, privilegiando as mulheres com maior poder aquisitivo. A Justiça no Brasil não é cega, ela olha realmente a pessoa. A criminalização da mulher pobre é bem visível. Como estrutura, o Judiciário é reprodutor da desigualdade social. As cadeias estão cheias de mulheres pobres.”
Ao abordar o tráfico de drogas, crime responsável pela prisão de mais da metade da população carcerária feminina, a coordenadora da Pastoral afirma que a maioria delas foi presa junto de outras pessoas, como marido, filhos ou namorado, e isso não significa que a droga seja de fato delas. E questiona: “Será que as mulheres ricas não são usuárias? E não estou querendo que elas vão pra prisão, mas por que só pobre vai preso?”
Irmã Petra destaca que o Estado brasileiro não oferece condições para a situação particular das mulheres presas, nem mesmo para aquelas que conseguem o direito de cumprir a pena em casa ou em liberdade. Segundo o Infopen Mulheres, 44,7% das mulheres estão presas em regime fechado e 30% não foram sequer julgadas.
“Não existem políticas públicas de verdade para ela ficar em casa e cuidar dos filhos. Mulher pobre, com filhos, o marido sumido ou preso, e que amparo essa mulher tem? Ela volta a ser então transportadora de droga e a pena aumenta. Não há amparo para as mulheres.”
O diagnóstico de irmã Petra é compartilhado por Susana Almeida, coordenadora de Políticas para Mulheres e Promoção das Diversidades do Depen.
“Não conseguimos dar um tratamento para essas pessoas, tanto antes de entrar no sistema prisional quanto depois, e elas terminam tendo que reincidir no crime. Isso é fato para uma pessoa que está no subúrbio, com filhos, sem educação, com dificuldade de acesso ao trabalho e outros direitos básicos. Se conseguíssemos dar possibilidades para elas, tenho certeza que essa reincidência diminuiria consideravelmente”, afirma Susana.
Segundo a coordenadora do Depen, apesar de alguns avanços nos últimos anos, o sistema prisional feminino ainda não consegue proporcionar educação, trabalho, maternidade, creche, atendimento psicológico e de saúde às mulheres presas. “A gente precisa melhorar isso para que essa pessoa tenha um direcionamento correto e consiga sair de uma zona de violência para uma zona segura.”
Para ela, a política de encarceramento em massa de mulheres por parte do Judiciário é resultado da pressão feita pela sociedade, que cobra pena de prisão mesmo para crimes pequenos. “Estamos passando por um processo de endurecimento da penalização. O Judiciário tem acolhido esse clamor da sociedade. Por crimes de pequena monta, dá-se pena de prisão, e por crimes de grande monta também, mas terminamos misturando pessoas com crimes muito diferentes. E quem tem maiores condições de defesa consegue os benefícios muito mais rapidamente. Há uma disparidade em relação ao acesso à Justiça.”
Susana Almeida explica que é nesse contexto de pressão social que crimes menos graves, como ser “mula” do tráfico, pequenos furtos para sustentar a família ou delitos cometidos sem o uso da violência e que não atentam contra a vida estão sendo julgados e resultando em condenações a regime de prisão fechada.
“Em geral temos muitos casos de mulheres que não são protagonistas no crime ou cometeram crime de menor potencial ofensivo, mas que são presas e cumprem pena em regime fechado. Isso tem sido terrível para o sistema prisional feminino. Mulheres que estão ali tentando sustentar suas famílias porque o marido foi preso e que terminam cometendo esses pequenos atos, como um quilo de frango e um ovo de páscoa para satisfazer a vontade de uma criança e a fome de uma família.”
No último dia 12 de abril, o governo federal publicou decreto que beneficiou mulheres presas com indulto especial (perdão e consequente extinção da pena) ou comutação da pena (substituição de uma pena ou sentença mais grave por uma mais branda). Para ter direito ao indulto, a mulher não pode ter sido condenada pela prática de crime cometido com violência ou grave ameaça, nem ter sido punida com falta grave.
Mães que se enquadrem nesses critérios e que têm filhos de até 12 anos podem ser beneficiadas pelo indulto, assim como mãe de filho com deficiência que precise de seus cuidados, independentemente da idade –– para isso, entretanto, é preciso ter cumprido um sexto da pena. As avós se enquadram no mesmo critério, porém, no caso de neto com deficiência, ele deve estar sob sua guarda. O decreto prevê a comutação de até metade da pena para mulheres desde que atendidos critérios como ter filho menor de 16 anos de idade ou portador de doença crônica.
A principal novidade do decreto foi a concessão de indulto e comutação de pena para as mulheres presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas, algo que nunca havia acontecido. Segundo irmã Petra, desde a publicação do decreto cerca de 300 mulheres já foram beneficiadas.
por Luciano Velleda, para a RBA publicado 18/12/2017