O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. Viver é muito perigoso. (GUIMARÃES ROSA, Grande sertão: veredas)
A Câmara dos Deputados aprovou o PL nº 4330/04 que regulamenta a terceirização, de autoria do deputado Sandro Mabel (PMDB-GO). E o fez com truculência, apesar da resistência de organizações dos trabalhadores e setores de representação que integram o Fórum Nacional Permanente em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização, FÓRUM. O substitutivo de Artur Maia (Solidariedade/BA) trouxe mudanças pontuais, não afetando o conteúdo. Trata-se de inédito ataque aos direitos trabalhistas assegurados, em 1943, pela Consolidação das Leis do Trabalho, CLT. Desmonte que, salvo exceções, teve repúdio coeso dos deputados do PT, PSOL e PCdoB.
Muitas são as manifestações contrárias, fortalecendo os embates que se travarão no Senado Federal. Organizações Sindicais convocaram greve geral. Magistrados, Procuradores do Trabalho, Auditores Fiscais, entidades do mundo do trabalho, professores, pesquisadores, enfim, buscam mostrar que se trata de projeto que não avança na concretização dos princípios constitucionais da dignidade humana e do valor social do trabalho, pilares da República. Ao retirar os freios colocados a essa forma de contratar, libera-a para todas as atividades, mercantiliza o trabalho humano, fragmenta os já rotos laços de solidariedade que costuram o processo civilizatório, como registra, entre outras de igual relevância, a Nota Oficial do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho, IPEATRA, de 10 de abril de 2015, “Além de isolar o Brasil dos cânones internacionais de tutela ao trabalho”. Terceirização que, se perversa no campo do privado, no campo do público impacta a alocação de servidores, escancarando as possibilidades da contratação sem concurso público, conquista da cidadania brasileira.
O Estado de São Paulo, 09 de abril de 2015, Caderno E&N, B1, noticiou suposta conquista sindical com a versão aprovada. Porém, é falsa a ideia de que contribua para “solucionar” o problema da representação sindical dos terceirizados. É igualmente falaciosa a de que criará empregos e aumentará competitividade e produtividade. Na realidade, o projeto apresenta potencial altamente precarizador das relações de trabalho. Além de corresponder a uma reforma nunca antes vista desde 1943, sem freios ao movimento insaciável de acumulação da riqueza, atingirá direitos sociais conquistados na luta contra as leis naturais do capitalismo (BELLUZZO, 2013), estimulará a “pejotização”, reduzirá a massa salarial, aprofundará as desigualdades e a discriminação, dificultará a constituição de fundos públicos e não resolverá a questão da estrutura sindical. No limite, veremos empresas sem empregados e trabalhadores sem direitos.
A terceirização ganha dimensão quando o movimento do capitalismo pressionou no sentido da liberalização dos mercados (BIAVASCHI; SANTOS, 2014). Adotada como estratégia para reduzir custos e partilhar riscos, as empresas não hesitam em precarizar o trabalho. Mudando formas consolidadas de organização, deslocam parte dos processos de trabalho para prestadoras de serviço que atuam de forma dispersa e fragmentada. Motivações econômicas na busca por redução de custos aparecem no centro das iniciativas. Nos anos 1990, a defesa fundava-se na geração de postos de trabalho. Hoje, frente à melhoria dos dados do emprego e às evidências empíricas de que sua criação é resultante do dinamismo econômico, a defesa é competitividade, indução do crescimento econômico e “modernização” das relações de trabalho. Sob a alegação de obsoletas e excessivamente rígidas, as noções de funcionalidade associadas à produtividade, eficiência e aos espaços da organização do trabalho realizado de forma coletiva e integrada, criam Redes. Nessa dinâmica, mantém um núcleo de trabalhadores qualificados e terceirizam os demais, menos qualificados, com baixos salários, piores condições de trabalho e alta informalidade, perdendo os trabalhadores o sentido de pertencimento de classe e, cindidos, suas demandas não têm força.
Essa forma derruba a tese da especialização, alternativa encontrada pelo Relator para liberar a terceirização nas atividades-fim, aquelas essenciais à empresa principal, limite, aliás, definido pelo Tribunal Superior do Trabalho, TST, na Súmula 331 (BIAVASCHI; SANTOS, 2014). Fica claro o movimento de legalizar forma de organização do trabalho predatória aos trabalhadores, já que as terceirizadas são apenas gestoras de uma mão de obra treinada e qualificada no próprio ambiente de trabalho. A especialização não está na prestadora de serviços, mas no trabalho que cria valor.
Muitos que defendem o PL empunham a bandeira da “modernidade”. “Modernizar” seria terceirizar mão de obra que vai trabalhar integrada ao processo produtivo, junto à maquinaria e às tecnologias, em regra propriedade da empresa principal, ganhando salários menores e em piores condições de trabalho do que os contratados diretamente. O que as pesquisas têm demonstrado é que as terceirizações têm encontrado freios no entendimento jurisprudencial consolidado pelo TST na Súmula 331. O PL em questão, ao invés de avançar em relação a esse entendimento, retrocede. Ao ampliar a terceirização para qualquer tipo atividade abre a possibilidade de que todos os trabalhadores brasileiros sejam terceirizados, sem os direitos históricos – FGTS, 13º salário, férias, repouso, direito à jornada, entre outros – e sem que responsabilidade solidária entre tomadora e terceiras seja definida. O fato é que no Brasil a terceirização instituiu nova dinâmica, degradando o trabalho, desigualando e interferindo nas relações de cooperação e contribuindo para fragmentar a organização sindical, realidade que o PL, se aprovado, aprofundará ao permitir, inclusive, a quarteirização dos serviços e não incluir as garantias de igualdade de direitos e condições de trabalho em relação aos trabalhadores diretos, sem resolver a representação sindical. Ao contrário, como sublinhou um advogado trabalhista, abre portas para uma maior pulverização, possibilitando sindicatos “especializados” e exclusivos na representação daquela categoria.
Ainda, provocará mais prejuízos aos consumidores e à sociedade, piorando a qualidade dos serviços, como ocorre nas áreas de telefonia, serviços bancários, energia, água. As empresas de prestação de serviços, de curta vida e notórios desaparecimentos do dia para a noite, deixam desamparados trabalhadores e causam prejuízos à sociedade à constituição dos fundos públicos, como é o caso da Seguridade Social e do FGTS, criando mais dificuldades para a construção de uma sociedade mais igual e justa. O não ao PL unifica os que acreditam nas possibilidades transformadoras da luta política. Viver é muito perigoso.
Texto jornalístico extraído do site Carta Maior de Magda Barros Biavaschi e Marilane Oliveira Teixeira – Brasil Debate EBC